Avançar para o conteúdo principal

Leituras - "A Vida de Pi - A viagem duma vida"

de Yann Martel. 2001.



Este livro prendeu-me da primeira à última página. Não apenas pelo que conta, mas dos cheiros, das cores, das paisagens e dos estados de espírito a que nos remete. De repente estamos algures num jardim zoológico na Índia em Pondicherry, ou numa plantação de chá e depois estamos em pleno oceano pacífico, sozinhos no alto-mar onde a linha do horizonte parece não ter fim e apenas céu e mar compõem a nossa visão.

Foi adaptado para filme, realizado por Ang Lee.

Conta a "aventura" de um rapaz indiano, chamado Pi, único sobrevivente de um navio cargueiro japonês que era suposto levá-lo a ele e à sua família, e aos animais do zoo que detinham, da Índia para o Canadá. Um rapaz que sobreviveu cerca de 8 meses sozinho, com um tigre-de-bengala, num barco salva-vidas, com muito pouco para comer e beber, muitas provações e situações de quasi-morte, conta portanto também sobre a fé. Sobre Deus. Sobre as religiões - cristianismo, hinduísmo e islamismo - no mundo. E no fundo é uma profunda reflexão filosófica sobre crer ou não, em Deus. E sobre o que é que é capaz de comover ou abrir o coração das pessoas para aceitarem Deus e terem fé. Por vezes, é preciso fantasiar ou intensificar um acontecimento de forma a que isso desperte a atenção das pessoas e as façam abrir ao mundo espiritual, da fé. Que é algo que não se toca nem se pode medir. É apenas algo que se sente, porque sim, em algo que, também não se vê, nem se toca nem se pode medir. A fé é como o amor, e talvez o amor seja também ter fé. Não tem explicação, apenas é, e é uma força capaz de fazer sobreviver um ser humano sozinho nas piores condições de vida. A sobrevivência não passa apenas por provações físicas mas também espirituais.
No meu entender há um paralelismo, ou até mesmo alegoria, da situação de náufrago com a situação de, na vida, nos sentirmos perdidos, vazios, em descrença. Esse caminho até terra firme, tal qual o náufrago, procura a salvação. 
Uma história lindíssima e que nos faz pensar sobre aquilo em que acreditamos, e que, por conseguinte, somos. Foi assim que a li e a percebi.

Frases, citações ou ideias de que gostei particularmente neste livro (foram imensas!):
(cada uma destas palavras, destes pensamentos e reflexões diz-me muito...)

"Se nós, cidadãos, não apoiarmos os nossos artistas, sacrificaremos a nossa imaginação no altar da crua realidade e acabaremos por não acreditar em nada e sonhar com futilidades."

"A vida é tão bela que a morte se apaixonou por ela, um amor ciumento, possessivo, que se agarra aquilo que pode. Mas a vida salta agilmente por cima da morte, perdendo apenas uma ou duas coisas sem importância, e o desânimo é a sombra passageira de uma nuvem."

"O ensino da natação, que com o tempo se tornou prática da natação, era estafante, mas havia um intenso prazer em dar uma braçada com crescente facilidade e velocidade, uma e outra vez, praticamente até à hipnose, com a água a transformar-se de chumbo derretido em luz líquida" - para quem, como eu, gosta de nadar... é precisamente por isto que gosto de o fazer!

"Piscine Molitor Patel"

"... a natureza como um todo era uma ilustração excepcionalmente perfeita da ciência..."

"... tudo estava em ordem, tudo era ordem..."

"Não há fundamentos para ir além de uma explicação científica da realidade, nem razão sólida para acreditar noutra coisa para além da nossa experiência sensitiva. Uma mente clara, uma atenção rigorosa aos pormenores e um pouco de conhecimentos científicos mostram a religião como uma tolice supersticiosa." - diz o cientista

"A dúvida é últil durante algum tempo. Todos temos de passar pelo jardim de Getsémani. Se Cristo jogou com a dúvida, também nós devemos fazê-lo. Se Cristo passou uma noite de angústia a rezar, se Ele lançou da cruz «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?», então também a nós nos é permitido duvidar. Mas devemos seguir em frente. Escolher a dúvida como filosofia de vida é como escolher a imobilidade como meio de transporte."

"Animalus anthropomorphicus... o animal tal como é visto através dos olhos dos humanos."

"Todos os seres vivos têm uma certa dose de loucura que os leva a procedimentos estranhos, por vezes inexplicáveis. Essa loucura pode salvar; ela é parte e parcela da capacidade de adaptação. Sem ela, nenhuma espécie sobreviveria."

"...os animais não fogem para algum lugar, mas sim de alguma coisa..."

"...o domador deve assegurar-se que continua a ser um superalfa. Pagará caro se, por inadvertência, deslizar para beta, gama ou ómega (por esta ordem). Muito do comportamento hostil e agressivo entre os animais é expressão de insegurança social."

"As vias da libertação são numerosas, mas o banco ao longo do caminho é sempre o mesmo, o Banco do Karma, onde a conta da libertação de cada um de nós é creditada ou debitada segundo as nossas acções. Isto, numa sagrada casca de nos, é o hinduísmo."

"...os hindus, na sua capacidade para o amor, são na verdade cristãos sem cabelo, tal como os muçulmanos, no modo como vêem Deus em tudo, são hindus barbudos, e os cristãos, na sua devoção a Deus, são muçulmanos que usam chapéu de abas."

"Mas não devemos aferrar-nos! Uma praga caia sobre os fundamentalistas e os literalistas!" - concordo plenamente...

Casas de Deus - templo hindu, uma mesquita, uma igreja cristã.

"O Cristianismo é uma religião apressada. Veja-se o mundo criado em sete dias. Mesmo a nível simbólico, é uma criação frenética. Para quem nasceu numa religião em que a batalha por uma única alma pode ser uma corrida de estafetas ao longo de muitos séculos, com inúmeras gerações a passarem o testemunho umas às outras, a rápida resolução do cristianismo tem um efeito estonteante. Se o hinduísmo flui tranquilamente como o Ganges, o cristianismo anda azafamado como Toronto em hora de ponta."

"Não é um negócio suficientemente grande para estar acima da lei, nem suficientemente pequeno para sobreviver à margem dela."

"A natureza é capaz de montar um espectáculo arrebatador. O palco é vasto, a iluminação é dramática, os extra são numerosos e o orçamento para efeitos especiais é absolutamente ilimitado."

"Parecia-me que flutuava numa escuridão pura e abstracta."

"Quando a nossa própria vida está ameaçada, o nosso sentido de empatia é embotado por um desejo terrível e egoísta de sobrevivência."

"... estar embriagado de álcool é vergonhoso, mas estar bêbedo de água é nobre e extasiante."

"Alguns de nós desistem da vida apenas com um suspiro resignado. Outros lutam um pouco, depois perdem a esperança. Outros ainda nunca desistem. Lutamos, lutamos, lutamos. Lutamos independentemente do curso da batalha, das perdas que assumimos, da improbabilidade do sucesso. Lutamos mesmo até ao fim. É qualquer coisa primordial, uma incapacidade para renunciar. Pode não ser mais do que uma estúpida ânsia de viver."

"Eu tinha fugido do barco salva-vidas para salvar a minha vida."

"O medo. É o único verdadeiro adversário da vida."

"Não era uma questão de ele ou eu, mas de ele e eu."

"... o pior erro de um náufrago é esperar demasiado e fazer pouco."

"Richard Parker - o tigre - era um pólo de vida tão magnético, tão carismático na sua vitalidade, que outras expressões de vida o achavam intolerável."

"Há geralmente um elemento de silêncio e de solidão na paz..."

"Bendita essa parte de nós que nos protege de demasiada dor e demasiada mágoa."

"... uma pessoa pode habituar-se a tudo, até a matar."

"O tempo é uma ilusão que nos põe ansiosos. Eu sobrevivi porque me esqueci até da noção do tempo."

"... tiláquios, as marcas de cor que os hindus usam na testa como símbolos do divino."

"Ser náufrago é ser um ponto perpetuamente no centro de um círculo... aprisionado pela geometria, também a lutar contra o medo, a raiva, a loucura, a desesperança, apatia."

"Só a morte nos excita coerentemente as emoções, quer considerando-a quando a vida é segura e trivial, quer fugindo dela quando a vida é ameaçada e preciosa."

"Tudo era ou pura luz branca ou pura sombra negra."

"A este respeito a ilha era gandhiana: resistia não resistindo."

"Nos momentos de assombro é fácil evitar pensamentos mesquinhos, alimentar pensamentos que abarcam o universo, que captam o trovão e o tinido, o espesso e o fino, o próximo e o distante."

"Pode haver felicidade maior do que a felicidade da salvação? A resposta - acredite - é Não."

"É espantoso as coisas que se ouvem quando estamos sós na escuridão da nossa mente moribunda. Um som sem forma ou cor soa estranho. Ser cego é não ouvir de outro modo."

"A miséria gosta de companhia e a loucura chama-a."

"Eles não tinham medo de mim, porque haveria eu de ter medo deles?"

"Preferia partir e sucumbir... do que viver uma vida meia-solitária de conforto físico e morte espiritual..."

"O alto trai o baixo e o baixo atrai o alto. Se estiver nas mesmas condições em que eu me vi, também elevaria os seus pensamentos. Quanto mais baixo estamos, mais alto a nossa mente há-de querer pairar. Era natural que, desolado e desesperado como estava, na agonia de um sofrimento constante, eu me voltasse para Deus."

"Chorava porque Richard Parker me tinha deixado tão sem-cerimónia. Que coisa terrível é falhar uma despedida. Sou uma pessoa que acredita na forma, na harmonia da ordem. Quando podemos, devemos dar às coisas uma forma significativa.... Na vida é importante concluir as coisas devidamente. Só então as podemos largar."

"O relato de qualquer coisa não se torna sempre uma história?"

"Relatar já tem qualquer coisa de invenção. Olhar para este mundo não tem já qualquer coisa de invenção?"

"O mundo não é apenas aquilo que é. É a maneira como o compreendemos, não? E, ao compreender qualquer coisa, nós podemos também inventar qualquer coisa nela, não? Isso não faz da vida uma história?"

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Sabem aquela expressão... "tas a dar-me música...."... pois é de isso mesmo que se trata!

Mas neste caso... é música boa!!! ;) O que é que, melhor que a música, consegue dizer tanto sem falar?! ;) "Ti prepara" que hoje estou destemida no que toca à quantidade de sons que tenho ouvido e quero partilhar... :))) Tove Lo - Habits (Stay High) - Hippie Sabotage Remix Meghan Trainor - All About That Bass Sam Smith - I'm Not The Only One Milky Chance - Stolen Dance Vance Joy - 'Riptide' The Sript - Superheroes Maroon 5 - Animals Maroon 5 - Maps (Explicit) Coldplay - Midnight Coldplay - True Love Coldplay - Ghost Story Especial.... e lindíssima esta próxima... :) Coldplay - Always in my head Boots Of Spanish Leather (Bob Dylan) - The Lumineers E, sabendo que é daquelas passageiras, mas que agora não consigo evitar dançar quando a oiço.... Bailando!! Enrique Iglesias - Bailando (Español) ft. Descemer Bueno, Gente De Zona The Black Mamba & Aurea - Wonder Why

Mais vale tarde...

Já há 1 ano que não publico nada por aqui. Não que faltem as ideias nem as palavras, mas faltou o tempo e a concentração necessária para escrever como gosto de fazer. Fui mãe entretanto. Isso explica quase tudo. Quis mergulhar sem rede nesse mundo. E assim o fiz. E sim, não é cliché, afirmar que há um antes e um depois de termos filhos. Se por um lado, e do ponto de vista mais simplista e naturalista existimos para assegurar a espécie e portanto não compliquemos as coisas, por outro, é um acontecimento que nos abre não necessariamente a um novo mundo mas muda a nossa perspectiva do mundo tal como o conhecíamos ou concebíamos antes. E isso altera profundamente a nossa vida. De repente passamos a ter um ser que depende de nós para sobreviver. E nós queremos, visceralmente, fazer de tudo para que ele não apenas sobreviva como viva da melhor forma possível em todos os aspectos que consigamos controlar. A minha atenção virou-se completamente para ele. É isto que para mim vale a pena fa

Leituras - "Equador"

de Miguel Sousa Tavares. 2003. Acho que, até à data, este deve ter sido o livro que li (ou absorvi...) mais rapidamente. Desde a primeira página até à última página prendeu-me e dele não me consigui libertar até terminar. Por variadas, e talvez algumas até inconscientes, razões. Porque estive recentemente no país sobre o qual a história recai - São Tomé e Príncipe. Porque consegui ligar cada detalhe descritivo aos sítios concretos por onde também passei. Porque percebi e senti a história. E por tudo o resto de um conjunto de pontas soltas e aparentes coincidências que aqui se ligaram. Mais não será preciso dizer para concluir que gostei bastante. "Quando, em Dezembro de 1905, Luís Bernardo é chamado por El-Rei D.Carlos a Vila Viçosa, não imaginava o que o futuro lhe reservava. Não sabia que teria de trocar a sua vida despreocupada na sociedade cosmopolita de Lisboa por uma missão tão patriótica quanto arriscada na distante ilha de S. Tomé. Não esperava que o cargo de