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Surrealidades do meu dia-a-dia #45 (Ditadura do telemóvel ou... Prioridades invertidas!)

Hoje em dia parece que vivemos na ditadura do telemóvel, vulgo prioridades invertidas, vulgo... passo a explicar. O som alto ou inesperado actua no nosso cérebro como um alarme, uma situação urgente que desperta em nós uma sensação de urgência ou até mesmo de emergência. Até aí... ok, mas não levemos isso ao limite, ou melhor,  tentemos controlar essa nossa reacção natural quando sabemos que não de adequa ao momento em que ocorre. Uma coisa é termos uma ambulância a soar atrás de nós, sinalizando que alguém está em perigo de vida, e isso nos faz automaticamente (e ainda bem) ajudar ou pelo menos não empatar o seu caminho. Outra bem diferente são situações banais do dia-a-dia que surgem no normal decorrer da nossa lidação uns com os outros (e porque é que lidamos uns com os outros?! Porque efectivamente somos seres sociais, temos necessidade de partilhar e não só conseguimos mais facilmente sobreviver e viver num ambiente de entre-ajuda e cooperação como isso acaba por potenciar tudo o que fazemos, em comum, gerando sinergias em que o todo é sempre mais do que a soma isolada das partes. Há pouco tempo ouvi algures que o ser humano é o único animal cujo parto precisa que a mãe e o bebé tenham ajuda, exigindo por isso a presença e auxílio dos nossos pares. Só por aí podemos reflectir e concluir que de facto não somos nada sozinhos e que nos organizamos e vivemos em sociedade por alguma razão, a começar pelo começo da vida!...). Voltando ao pensamento anterior, falava eu sobre situações banais que despertam em nós sentimentos de urgência sem de facto o serem.

Isto podem parecer mesquinhices mas se pensarmos bem, não são. É nos pequenos actos que nos revelamos e nos respeitamos. Por exemplo, é comum estarmos a falar com alguém ou a fazer algo que consideramos importante, e se de repente o nosso telefone toca... é imediato (em 99% dos casos) que interrompemos a nossa conversa inicial ou paramos de fazer o que estamos a fazer, para... atender o dito cujo, que toca insistentemente como que a exigir, a ordenar que o atendam. E nós, fazemos continência e... atendemos! Parece ridículo descrever assim este tipo de situação mas já pensaram bem no que é que este "pequeno" gesto significa verdadeiramente?
Significa que por momentos não temos mão naquilo que fazemos e a quem fazemos, e portanto naquilo que somos, aos nos deixamos comandar por prioridades invertidas, abdicando de marcar a diferença e fazermos o que é mais difícil mas correcto.

Se há coisa que detesto que me façam (e eu própria também já o fiz uma ou outra vez...) é estar a falar com alguém e o telefone dessa pessoa toca, ela atende, e interrompe a nossa conversa, ficando eu ali (que por norma ando sempre cheia de pressa!), especada feita parva a olhar para o meu interlocutor (que entretanto me descartou ou despriorizou) a decidir para com os meus botões se devo ser paciente e tolerar uma coisa que me enerva ou fazer um tchau à pessoa e abalar?! É irónico que se optar pela segunda opção eu seja considerada a antipática da cena quando em primeira mão foi a outra pessoa que primeiro o fez, ao atender o telefone e a deixar-me ali "em espera". Considero isso uma enorme falta de respeito. 

Há situações e situações. Telefonemas e telefonemas. Pessoas e pessoas. Por vezes estamos simplesmente à espera de uma resposta urgente, ou alguém que não costuma ligar-nos ou a determinada hora o faz significa que pode haver algum problema, ou por motivos de trabalho estamos dependentes das chamadas que nos fazem.... mas no geral, e não me venham dizer que não, porque todos sabemos muito bem distinguir este tipo de "prioridades", não se trata deste tipo de urgências. São, por norma, coisas banais, tipo uma amiga ou amigo a combinar um café ou a comentar o que viu na tv ou leu no jornal, etc etc.

Há dias entrei eu numa loja. Tinha o carro mal estacionado. Disse ao senhor vendedor que eu estava com pressa, mas que sabia o que queria, portanto seria mesmo só "pagar e levar". Muito bem, disse o simpático senhor. Esta é uma daquelas lojas antigas de pequenos electrodomésticos, daquelas que já não há muitas, muito sui generis e tradicional. O senhor, na casa dos oitenta anos, atrás de um balcão velho de madeira também ela velha, sentado, com um certo ar prostrado e de marasmo, boina poisada sobre a mesa. Penso que dá para perceber a envolvência... Ora eu peguei no que queria, dirigi-me rapidamente ao balcão e disse que queria pagar. O senhor vendedor acenou vagarosamente com a cabeça, sorriu, disse que eram x€ (que eu já levava na mão para pagar) e começou a passar o recibo. Num daqueles blocos antigos com papel químico, em, que o recibo é preenchido integralmente à mão e depois o vendedor dá-me o original, guarda outro para si e outro para a contabilidade. O momento de passar o recibo foi moroso... já esperava que assim fosse e nada referi, pus-me apenas a esperar. Nisto toca o telemóvel do senhor. O que é que ele fez? Este senhor já velhote e a quem eu sempre associo uma atitude de cordialidade, respeito e decoro. Ora... Ele... parou de me passar (a merda do recibo... sorry! foi o que pensei naquele momento!) o recibo e atende o telefone. (eu cerrei os lábios e não disse nada...) A conversa era de chacha, "ah sim sim passa cá amanhã, já há tempo que não nos vemos, sempre pomos a conversa em dia...", e eu ali a sentir-me como uma daquelas panelas que se vendem também nesta loja (sim... uma panela de pressão!), mas não lhe disse nada. Cúmulo dos cúmulos, enquanto decorria o dito telefonema, toca o telefone fixo da loja. O que é o senhor faz? Faz-me sinal com os olhos como quem diz "não dou conta de tanta solicitação!!!" e diz à pessoa com quem estava a falar no telemóvel que espere um bocadinho, e... atende o telefone fixo. Ora bem, deixou-me primeiro a mim à espera, que sou cliente dele e lhe disse que estava com pressa e estava a pagar, deixou depois também à espera o tal amigo no telemóvel, e ali estamos nós naquela situação ridícula. Dei comigo a pensar que realmente há qualquer coisa de errado e incorrecto nisto. Algo que me incomoda solenemente. Porquê? Porque significa que nos desrespeitamos uns aos outros por nada. E isso, é gravíssimo! 
Para que conste, a conversa no telefone fixo também era de chacha, ou seja não urgente.
Terminou esse telefonema, depois o outro e depois então o senhor lá acabou de me passar a factura-recibo. Exactamente por esta ordem. Que está ou não invertida, analisada à luz das prioridades das coisas deveras importantes?!
Eu nada disse. Esperei. Pensei. Reflecti. Aprendi. E vim embora, com o recibo numa mão e a compra na outra.

Se não tiverem mais nada que fazer... pensem um bocadinho nisso. E juntem-se a esta grande e hercúlea luta contra o regime ditatorial do telefone a tocar.

Obrigada! 

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