Aqui vai... um texto lindíssimo e um valente murro no estômago. Bom-apetite!
ELOGIO AO AMOR
Miguel Esteves Cardoso
"Quero
fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de
verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem
uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se
dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido.
Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa
das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.
Hoje
em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de
antemão, fazem
planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a
ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se,
discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante
psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor
tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de
se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.
Eu
quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do
amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou
farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de
serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão
comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um
risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros
e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de
bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores
do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a
paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza,
o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro
a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O
amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha.
Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a
pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da
tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio
esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos
casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance,
gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi
trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa
beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é
para nos ajudar, não é para nos fazer felizes.
Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso
amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo
ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O
amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A
"vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não
é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor
puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima.
O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem
se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa
alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha,
não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão
é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e
sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a
vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A
vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para
sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito
desesperadamente. O coração guarda o que se nos
escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá
quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se
lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber,
amar e não se ter, querer e não guardar a esperança,
doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de
quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.
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